Sim, parece um Renault Dauphine, o simpático pequeno familiar que a Régie lançou em 1956. É natural, porque o Henney Kilowatt é um Renault Dauphine.

Mais concretamente, um Dauphine ao qual foram retiradas as entranhas. E o pessoal adepto de automóveis movidos a dinossauros mortos acrescentará: e a alma também!

O crepitante motor de quatro cilindros, que habitava sossegadamente por baixo do capô traseiro foi substituído por um motor elétrico. De resto, quase nada mudou.

Mas como é que uma situação destas pode acontecer nos Estados Unidos da América a um pacato Renault? E, sobretudo, porquê?

Especialistas de qualidade

As entidades e pessoas envolvidas não podiam ser mais credenciadas, o que torna este diminuto projeto ainda mais curioso. Ora vejam: a iniciativa partiu de C. Russell Feldmann, um empresário que fez fortuna com auto-rádios. Atenção, nada de ilegal, porque eram fabricados e vendidos pelas suas empresas…

No início dos anos 50, Feldmann presidia a um conglomerado empresarial chamado National Union Electric Company. Entre outros produtos, fabricava as baterias Exide, para além de todos os auto-rádios necessários para financiar outros projetos.

No portfólio da companhia surgia ainda a Henney Motor Company, especializada na construção de carroçarias fora de série, sobretudo em automóveis Packard. Ganharam fama as carroçarias Station Wagon, ambulâncias ou para serviço funerário assinadas pela Henney.

Outra das empresas que contribuiu, neste caso, graças à experiência com motores elétricos, foi a Eureka Williams. Esta fazia eletrodomésticos muito bonitos, sobretudo os seus afamados aspiradores.

Juntamos todas estas especialidades, adicionamos um engenheiro brilhante chamado Victor Wouk, ex-Caltech — que mais tarde estaria ligado ao desenvolvimento dos primeiros automóveis híbridos — e o que temos? Pois foi. O Henney Kilowatt.

E como entra a Renault nesta história? Na verdade, a Renault estava era de saída. Depois de mais uma tentativa para vender os seus micro-familiares (dentro do contexto americano, bem entendido) nas terras do Tio Sam, estava a empacotar os tarecos, de regresso a “La France”.

Calhou bem quando alguém em nome do Big Boss Feldmann bateu à porta, a perguntar se tinham sobrado alguns daqueles “Doefaines” engraçados.

As qualidades do Renault Dauphine

De todos os automóveis disponíveis no mercado americano, os pequenos Renault eram sem dúvida os mais adequados para esta experiência, por diversos motivos, sendo o primeiro o baixo peso. Sem motor, transmissão e depósito de gasolina, pesava menos de 500 quilos.

Outro ponto forte era o espaço disponível para as baterias, tanto à frente como atrás. Por fim, o preço. A Renault tinha tanto interesse em voltar a França com Dauphines a tiracolo, como um nómada do Sahara anseia regressar ao acampamento com areia da praia, depois de uma férias no Algarve.

Depois de alguns meses de testes, o Henney Kilowatt foi lançado, em 1959. Tinha um sistema de 36 volts, alimentado por 18 baterias de dois volts. O motor elétrico tinha 5,2 kW ou 7 cavalos, o que permitia uma velocidade máxima de 64 km/h e uma autonomia máxima — estimamos que não a esse ritmo… — de 64 quilómetros.

Como termo de comparação, o Dauphine tinha 27 cavalos e uma velocidade máxima de 112 km/h. Argumentos reforçados pelo consumo frugal, para a época, inferior a 7 l/100 km, permitia uma autonomia superior a 400 km.

Uma evolução que não chegou a tempo

Em 1960, o Henney Kilowatt recebeu melhorias substanciais, sobretudo graças ao sistema de 72 volts com 12 baterias de 6 volts. Assim equipado, o Kilowatt atingia uma velocidade de 97 km/h e ganhava uma autonomia de quase 100 km.

As baterias podiam ser recarregadas através de um cabo e tomada idênticos aos de qualquer aspirador, com uma carga total a requerer cinco a seis horas.

A Henney comprou cem Dauphine à Renault e preparou-os para a transformação, mas apenas 47 foram terminados e vendidos. Quase todos na versão de 32 volts, entregues a empresas ligadas a equipamentos elétricos. Apenas 15 foram adquiridos por particulares, porque o seu preço — 3600 dólares — permitia comprar um bom Oldsmobile V8.

Um final feliz

Apesar do insucesso comercial, o Henney Kilowatt teve pontos positivos e permitiu manter a chama viva dos veículos elétricos. Estes, desde meados dos anos 20, não tinham um projeto credível, como o Kilowatt.

Já neste século, a Renault acabou levou um destes Dauphine eletrificados para França. Agora reside no seu departamento clássico, onde foi recebido como um filho pródigo que regressou das Américas, após quase 70 anos de exílio. E alguns tratamentos… de choque!

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