A introdução do passe único avançada na última semana pelo Primeiro-Ministro, António Costa, é vista como uma janela de oportunidade para a alteração dos hábitos de mobilidade dos portugueses.

O Welectric entrevistou Fernando Nunes da Silva, antigo vereador da Mobilidade da Câmara de Lisboa, e Paula Teles, especialista em transportes e consultora de várias autarquias na área da mobilidade.

Medida pode tornar transportes mais atrativos

Fernando Nunes da Silva, antigo vereador da Mobilidade da Câmara de Lisboa, entre 2009 e 2013, assume que se trata de “uma medida extremamente importante que chegou a ser discutida, quando estive na Câmara Municipal de Lisboa, quando António Costa era presidente do município”.

Fernando Nunes da Silva é licenciado em Engenharia Civil, no ramo de Urbanização e Transportes, pelo Instituto Superior Técnico, universidade pela qual também se doutorou. É uma referência nacional em termos de urbanismo e transportes, planeamento e gestão urbanística, mobilidade e desenvolvimento sustentável. Foi vereador com o pelouro da mobilidade na autarquia de Lisboa, durante quatro anos, quando António Costa era presidente da autarquia da capital.

Entende Nunes da Silva que a questão do elevado custo dos transportes para os utentes “é mesmo um elemento essencial, entre outros, para se conseguir melhorar a atratividade dos transportes públicos”, inviabilizando que sejam mais utilizados.

“O valor dos transportes para quem os utiliza chega a ser disparatado face ao rendimento médio que se verifica em Portugal. Para muitas pessoas, os preços dos transportes são incomportáveis e – mais – em muitos casos são mais caros de usar do que se as pessoas optarem por levar o seu veículo particular. E se levarem também no seu carro outra pessoa, a diferença é então abissal”, aponta este especialista que acrescenta que a questão do custo, sendo muito importante, “não é a única variável negativa que tem de ser resolvido a fim de se poder ter uma atrativa oferta de transportes públicos”.

Dois mil títulos de transporte

Afirma o Professor Catedrático Nunes da Silva: “Paralelamente, torna-se igualmente indispensável que se termine com a kafkiana existência de cerca de dois mil títulos de transporte na área metropolitana de Lisboa, o que é um absurdo e uma demonstração de profunda ineficiência do sistema. Essa visão de cada operador de transportes de que cada cidadão paga estritamente o transporte que usa, sem ter a noção do sistema em que se insere e com o qual se deve articular, não faz sentido nenhum”, denuncia.

“O custo é uma barreira efetiva
para as pessoas se interessarem pelos transportes públicos”,
diz Nunes da Silva

A medida anunciada “vai, por isso, no bom sentido”, frisa Fernando Nunes da Silva, explicando que resolve dois problemas: “Em primeiro lugar, torna o sistema tarifário extremamente simples (e isso é um fator atrativo), definindo dois valores, 30 euros para deslocações dentro do mesmo município, e 40 euros para deslocações entre concelhos; em segundo lugar, resolve o valor elevado que o preço do transporte apresenta. Pagamos também o mesmo ou até mesmo duas vezes mais pelos transportes do que os cidadãos de outros países europeus, se levarmos em consideração a paridade dos rendimentos dessas nações.

Correspondência entre transportes

“A existência de bons transportes públicos também beneficia quem utiliza o automóvel, pois reduz os engarrafamentos. É elementar para a própria saúde da economia do país. Veja-se que quando há greve de transportes, o trânsito fica caótico”, declara Nunes da Silva.

Na perspetiva de Fernando Nunes da Silva, o projeto do passe único, ao colocar à mesma mesa os inúmeros operadores, públicos e privados, de transportes das áreas metropolitanas das duas grandes cidades do país pode ainda ter o condão de permitir criar condições para corrigir outros problemas com que se debate a malha de transportes coletiva, como são o caso da organização das redes, da correspondência dos transportes e dos horários desfasados entre diferentes transportes. “Os operadores vão ter de deixar de olhar de uma forma autónoma para a sua rede passar a ser mais intermodais e estar mais interrelacionados”, não tem dúvidas Fernando Nunes da Silva.

“Medida coloca-nos no bom caminho”, diz outra especialista

Também entrevistada pelo Welectric, Paula Teles, especialista em transportes, vê esta solução como “muito positiva”.

Paula Teles é engenheira civil, especialista em Planeamento do Território pela FEUP e Mestre em Planeamento e Projeto do Ambiente Urbano. Dirige uma empresa de planeamento e gestão de mobilidade urbana, sendo consultora autárquica em transportes e mobilidade em vários municípios.

“É uma notícia muito importante e recebo-a com grande alegria. Luto há muito por uma mobilidade urbana sustentável como contraponto aquilo que tem sido a insistência no uso excessivo do carro. O anúncio desta medida coloca-nos no bom caminho, incluindo face aos problemas ambientais que o Planeta enfrenta, pois é sabido que o setor dos transportes contribui em dois terços para as emissões de CO2 para a atmosfera”, afirma esta especialista.

Políticas que alteram hábitos nos transportes

Para Paula Teles, “claramente, temos de resolver o problema dos transportes e isso passa por tirarmos o maior número de veículos das cidades. Um investimento a montante indispensável é a adoção de políticas que façam com que as pessoas mudem de comportamentos, alterem os hábitos de mobilidade, no sentido de passarem a utilizar mais transportes públicos. Para isso acontecer é necessário ultrapassar um problema maior que são os custos que comportam para os utentes e cidadãos de utilizarem transportes públicos”.

“Preços atuais são incomportáveis”

Esta consultora autárquica em transportes, realça que “o que se verifica atualmente é que as famílias, muitas vezes, fazem contas e concluem que é mais barato terem um carro pequeno e desdobrarem-se em viagens, fazendo a distribuição das diferentes pessoas pelas escolas e locais de trabalho do que comprarem passes para todos os elementos do agregado familiar. Temos de inverter isso”.

A Área Metropolitana de Lisboa abrange 18 municípios: Alcochete, Almada, Amadora, Barreiro, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Odivelas, Oeiras, Palmela, Seixal, Sesimbra, Setúbal, Sintra e Vila Franca de Xira.

Esta técnica refere que há “muitas pessoas a ganhar 700 ou 800 euros mensais e é incomportável terem passes caros. Nalguns países do norte da Europa, como Suécia ou Holanda, temos assistido à aplicação de medidas que visam tornar o transporte coletivo mais eficiente, mas também mais atrativo, apostando na redução dos preços. Nesses países temos políticas de tarifas mais baratas, havendo, paralelamente, uma tendência de tornar os transportes públicos gratuitos”.

Intermodalidade e parques dissuasores

Paula Teles considera que “os políticos começam a entender que os transportes públicos e a sua boa interligação com outros transportes podem trazer benefícios sociais e de saúde física e mental grandes, além de melhorarem as condições do próprio Planeta”.

A Área Metropolitana do Porto inclui 17 autarquias: Arouca, Espinho, Gondomar, Maia, Matosinhos, Oliveira de Azeméis, Paredes, Porto, Póvoa do Varzim, Santa Maria da Feira, Santo Tirso, São João da Madeira, Trofa, Vale de Cambra, Valongo, Vila do Conde e Vila Nova de Gaia.

Daí a sua pronta ilação: “É um caminho inevitável a aposta num transporte público bem estruturado que permita que as pessoas façam um bom uso dos diferentes meios de transporte existentes. Nesse espírito, é importante que as pessoas utilizem igualmente parques dissuasores nas periferias”.

Como técnica que estuda estes assuntos, Paula Teles diz que “gostava de ver na área metropolitana do Porto – e refiro o Porto, pois é onde resido, mas a lógica também se aplica a Lisboa – um passe único que tivesse uma ampla interligação de todo o género de transportes, incluindo bikesharing ou mesmo táxis flutuantes – tudo articulado no Andante. Seria muito benéfico para a mobilidade urbana que esta intermodalidade presidisse também aos títulos de transporte”.

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