A Tesla anunciou, na semana passada, uma série de alterações à sua oferta de produto. Com a marca americana e o seu irrequieto CEO, a imprevisibilidade é a única constante. Nesta ocasião, ninguém ficou indiferente, entre proprietários atuais e futuros, funcionários, analistas… Aqui fica o resultado de uma reflexão sobre as várias e complexas questões que esta mudança de estratégia implicou.
Afinal, o que se passou?
Elon Musk anunciou que a Tesla vai finalmente comercializar o Model 3 Standard Range. Trata-se da versão base da marca, que tinha um preço prometido de 35.000 dólares. Este valor terá sido um dos grandes catalisadores do meio milhão de reservas do Model 3 em 2016.
E é mesmo possível comprar um Model 3 por esse valor?
Quase. Ao preço mínimo possível de 35.000 dólares nos EUA é necessário acrescentar o custo obrigatório de $1200, para entrega no destino. Neste momento, $36.200 é o valor mais baixo a pagar por um Model 3 novo.
Mas é uma versão muito básica, de certeza…
Tem alguns acabamentos simplificados. Os bancos e o volante são de acerto manual. Os revestimentos são em tecido, a consola é mais simples. A capacidade utilizável da bateria ronda os 50 kWh. A autonomia é de 340 km e tem uma velocidade máxima de 210 km/h. A aceleração dos 0-100 km/h é cumprida em 5,6 segundos. Ah! E, como diria Henry Ford, o cliente pode escolher qualquer cor, desde que seja preto. Todas as outras cores são opcionais.
Existe uma versão Standard Range Plus, que custa mais $2000 dólares e que provavelmente fará mais sentido. Terá 370 km de autonomia, velocidade máxima de 225 km/h e fará menos 0,3 segundos dos 0-100 km/h. Tem também um equipamento de série superior.
Mas então é uma excelente notícia?
Há vários lados positivos nesta história. o primeiro é que a Tesla conseguiu disponibilizar uma versão base do Model 3, como prometera. Mesmo que o valor “App na mão” seja um pouco mais elevado do que os $35.000, é um feito. A Tesla concorreu o ano passado, no mercado americano, com os restantes compactos premium, cujos valores de acesso começavam nos $30.000.
A outra boa notícia é que torna um VE com qualidades acima da média acessível a um maior número de pessoas. E vai forçar a concorrência a nivelar a sua estrutura de preços também. Podemos falar mais sobre isso adiante.
A expectativa é de que as versões Standard Range possam chegar à Europa no segundo semestre deste ano, o que também vai tornar a oferta da Tesla mais competitiva neste mercado. Ainda assim, será difícil que aparecem à venda por menos de 40.000 euros. A estimativa é que seja um pouco acima deste valor.
Mas há alguns fatores preocupantes, que também não devemos ignorar.
Como por exemplo?
Um deles será o de tentar perceber se é viável para a Tesla vender as versões mais baratas do Model 3. Os construtores conseguem sempre margens maiores nas versões mais caras. Por isso os primeiros Model 3 lançados foram as versões Long Range, Dual Motor e Performance. A ideia é incrementar a produção, utilizando a escala para reduzir os custos unitários. Assim é possível oferecer as versões mais acessíveis com margens que façam sentido em termos financeiros. A Tesla ainda não atingiu esse ponto.
Como é que podemos ter a certeza disso?
Porque uma das medidas anunciadas para justificar as versões com preços mais baixos foi a restruturação das lojas da Tesla e da equipa comercial. As reservas e compras serão feitas exclusivamente online. Muitas lojas deixarão de existir, mantendo os Centros de Serviço e apenas alguns showrooms. Também haverá redução de pessoal.
Se o aumento de produção, só por si, permitisse baixar preços e disponibilizar as versões de entrada, isto não seria necessário. Até porque no caminho da massificação, a Tesla continua a precisar de convencer novos clientes, fora do seu grupo de fãs. Grupo este, note-se, bastante extenso e que permitiu que a marca chegasse até aqui. Mas há muitos potenciais clientes que, para fazerem a mudança, precisam de ver, tocar, conduzir um automóvel antes de o comprar.
Mas a redução de estruturas comerciais e a venda online é o sonho de quase todos os construtores. Se funcionar, a Tesla abre o caminho para a implementação deste novo hábito de consumo.
E vai funcionar?
Essa é a pergunta de muitos milhões de dólares. Neste momento, parece ser o único caminho para a Tesla poder oferecer o Model 3 a um preço de arranque mais baixo. A resposta será dada pelos clientes.
A Tesla precisa mesmo de vender mais unidades, para poder produzir mais e mais barato. Está no ar a ideia de que a procura para as versões mais caras entrou em declínio acentuado nos EUA. Durará certamente alguns meses na Europa, mas é preciso garantir que não pára.
A fase de expansão da marca continua ainda no início. Tem apenas uma fábrica para produzir o Model 3, enquanto não arranca a Gigafactory 3, na China. E este balanço é preciso para poder lançar os próximos modelos, sobretudo o Model Y. O SUV com base no Model 3 vai ser apresentado para a semana. Tudo indica que será tão decisivo para a Tesla quanto o Model 3.
A Tesla faz lembrar um malabarista com muitas bolas no ar. Parar é morrer. E a cada dificuldade superada parece surgir outra.
Porque é tudo tão difícil para a Tesla?
Porque teve de criar um ecossistema próprio de raiz para enfrentar o modus operandi de uma indústria com processos muito definidos.
A Tesla criou uma cadeia de fornecimento de matérias-primas e uma rede de carregamentos inovadoras. Embora menos faladas do que os produtos propriamente ditos, estas têm um papel decisivo no seu sucesso. Estão aliás a revelar-se os principais obstáculos dos seus concorrentes.
Mas tudo isto teve custos que hoje são dívida para gerir. Não está posta de parte a possibilidade de a Tesla apresentar estas propostas agora porque precisa de cash flow com urgência para continuar a cumprir as suas obrigações.
E os Model S e X, há novidades?
Sim, algumas. A principal foi anunciada há umas semanas, com o desaparecimento das designações 75 e 100, para ficarem idênticas às do Model 3. Temos as especificações Standard Range, Long Range e Ludicrous Performance no Model S. No X, não existe Standard Range. Tudo indica que o pack de baterias é sempre de 100 kWh, limitado no SR, a 75 kWh.
Mas a alteração mais importante foi ao nível dos preços. Baixaram todos significativamente. Em alguns casos, mais de 50 mil euros!
Como é que isso aconteceu?
A baixa generalizada de preços foi justificada pela vontade de tornar os Tesla acessíveis ao maior número possível de pessoas. E também pelas poupanças conseguidas graças ao aumento de produção, embora nos S e X os números não tenham aumentado tanto assim…
Mas ainda falta confirmar se reduções tão drásticas vão ter um efeito proporcionalmente tão positivo nas vendas…
Porquê? À partida haverá mais gente que pode comprar…
Sim, mas os clientes que compraram Model S e X em Portugal recentemente constataram que, poucas semanas depois, poderiam ter comprado o mesmo automóvel muito mais barato. É fácil compreender o seu desagrado, até porque isto se reflete significativamente no valor dos usados.
Havia uma expectativa de valor que de repente é gorada com um acerto de preço tão violento. Na China e em outros mercados da Ásia, houve mesmo protestos dos clientes junto das lojas Tesla. As pessoas sentem-se enganadas.
Além disso, potenciais clientes podem adiar a compra de um Tesla, à espera de nova baixa de preços.
Como é que a Tesla justifica esta medida?
Dizendo que, em vez de negociar descontos caso a caso, como fazem outras marcas, baixam o preço para toda a gente. Tipicamente, a Tesla pratica uma política sem descontos individuais.
Verdade seja dita que, nos EUA, a baixa de preço não foi tão violenta.
Por outro lado, se encararmos a Tesla como uma empresa de produtos tecnológicos, as reduções de preço acabam por ser mais compreensíveis. Mas na indústria automóvel, esta prática não é muito comum.
Ainda assim, apesar de aparentemente erráticas, estas medidas vão preocupar os construtores tradicionais. No que diz respeito aos VE, aqueles têm apontado a Tesla como referência para o seu posicionamento em termos de preço. Se o continuarem a fazer, terão que encontrar forma de acompanhar esta baixa de preços. Alguns construtores alemães já confessaram que não sabem como a Tesla consegue produzir o Model 3 tão barato…
Quais vão ser as cenas dos próximos capítulos?
Já deu para perceber que, com a Tesla, não há. Tudo pode mudar rapidamente. A próxima data agendada é 14 de março, com a apresentação do Model Y.
O Model 3 está agora a iniciar a sua carreira comercial na Europa e é preciso perceber como vai correr. Entretanto, os dois modelos disponíveis do Model 3 também ficaram alguns milhares de euros mais baratos.
Fala-se que poderá surgir em breve o Mid-Range dentro de alguns meses. Custará cerca de 50.000 €. Depois virá o Standard Range, com valores a começar nos 41.000 euros.
O Long Range só de um motor regressou entretanto ao configurador americano, oferecendo mais um degrau entre o Mid Range e o Long Range Dual Motor. São agora seis as versões diferentes do Model 3 no mercado americano.
A Tesla informou também que vai proceder a uma atualização de todos os Model 3, conferindo maior autonomia, potência e velocidade máxima. Como é habitual, estes upgrades são feitos através de software, sem necessidade de visitar a oficina.
Uma coisa é certa, ninguém pode acusar a Tesla de ser uma empresa aborrecida…