A Europa precisa nos próximos 20 anos de reduzir as suas emissões de gases com efeito de estufa duas vezes mais do que o fez nos últimos 30 anos. O alerta é dos ambientalistas da Zero que acrescentam que esta emergência climática é agravada por uma “degradação insustentável dos ecossistemas, por um declínio da biodiversidade, por desafios em termos de segurança energética e por uma crise do custo de vista com aumento das desigualdades sociais”.

É em resposta a todos estes desafios que o CLEVER – uma Visão Colaborativa de Baixo Consumo de Energia para a Região Europeia (Collaborative Low Energy Vision for the European Region) – foi desenvolvido, mostrando uma via de descarbonização para a Europa ambiciosa, mas realista.

O CLEVER é um trabalho que abrange um total de 30 países (UE27, Reino Unido, Noruega e Suíça) desenvolvido durante quatro anos entre 26 organizações parceiras (think-tanks, organizações da sociedade civil, institutos de investigação, universidades, etc.), entre as quais se encontra a Zero, sob a liderança da associação francesa négaWatt.

“Trata-se de um trabalho essencial e inédito, elaborado da base para o topo, i.e., partindo do detalhe para construir um cenário geral, que agrega os percursos nacionais numa visão europeia integrada que respeita os princípios de uma partilha justa de esforços, da suficiência energética e de recursos, e de uma maior equidade entre e dentro dos países. O trabalho não se limita a mostrar as vantagens e possibilidades da incorporação de energias renováveis em larga escala, pois dessa forma não se distinguiria dos demais: vai mais longe, e mostra que o caminho para a descarbonização só é viável por via de uma redução e uso eficiente e parcimonioso de recursos, tanto a nível nacional como europeu, sóbrio no consumo geral de energia e materiais e na necessidade de novas infra-estruturas”, explica a Zero.

Primeiro suficiência, depois eficiência, e só depois renováveis: um princípio basilar essencial

O cenário CLEVER baseia-se no paradigma Suficiência-Eficiência-Renováveis. Centra-se no lado da procura, começando por assumir uma redução das necessidades energéticas ao que é considerado essencial para garantir um nível adequado de serviços a toda a gente, numa perspetiva de abundância frugal (princípio da suficiência).

Em seguida, a suficiência é combinada com uma redução da intensidade energética por via de melhorias tecnológicas (princípio da eficiência), diminuindo assim a quantidade de energia necessária para satisfazer esse nível de serviços.

A Zero apela ao governo português e aos organismos da administração por si tutelados para integrar o critério da suficiência nos trabalhos de modelação subjacentes ao Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), como forma de alcançar a neutralidade climática no país até 2045, ou mesmo como (única) forma de a viabilizar até 2040. “Portugal deve integrar a suficiência tanto nos cenários nacionais como no planeamento e legislação conexos, nomeadamente na aplicação do pacote Objetivo 55. O PNEC deve ter um capítulo específico dedicado à suficiência. Embora existam planos e as políticas nacionais que já incluem medidas de suficiência, incluem-nos a um nível muito inferior ao necessário, possível e socialmente aceitável”.

Finalmente, a procura restante de energia é suprida só por energias renováveis – a energia nuclear ou a captura e sequestro de dióxido de carbono (CO2) ficam fora da equação (princípio das energias renováveis). Esta metodologia contrasta com a abordagem mais tradicional adotada pela maioria dos cenários, que dá prioridade à incorporação de renováveis, nuclear e fósseis com captura e sequestro de CO2 na oferta energética, complementando-o depois com eficiência e só depois, eventualmente, considerando a suficiência como uma opção de ajustamento final.

“No CLEVER a construção dos cenários seguiu fortes princípios de sustentabilidade de raiz, abordando um conjunto vasto de questões ambientais, como o esgotamento das matérias-primas, para garantir o objetivo central climático do quadro integrado dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas de manter o aumento da temperatura média global abaixo de 1,5°C”, referem os ambientalistas.

Principais lições para a Europa e Portugal

De acordo com esta análise, a Europa pode ser totalmente independente energeticamente: através da rápida implantação da suficiência, da eficiência e das energias renováveis o consumo de combustíveis fósseis pode diminuir o suficiente para obviar a necessidade de importações energéticas até 2050, possibilitando a Europa ser totalmente independente energeticamente antes dessa data.

“A Europa deve – e pode – alcançar a neutralidade climática até 2045: emissões líquidas nulas de gases com efeito de estufa até 2045 (com base numa abordagem conservadora de sumidouros de carbono) são a via para a Europa contribuir de forma justa para limitar o aquecimento global a menos de 1,5°C. Mas para isso é necessário reduzir as emissões líquidas em 65% até 2030, altura em que já terão sido consumidos três quartos do orçamento de carbono restante para a região, em 80% até 2035 e em 90% até 2040”, defendem os ecologistas.

consumo de energia na Europa deve ser reduzido em 55%

O consumo de energia na Europa deve ser reduzido em 55% até meados do século, sendo a suficiência um fator essencial para isso: uma redução da procura final de energia em 55% até 2050, em comparação com os níveis de 2019, é um fator chave para colocar a Europa numa trajetória de transição energética resiliente e sustentável. As reduções de 25% em 2030 e de 45% em 2040 são marcos importantes nesse percurso. De acordo com esta análise, a melhoria da eficiência energética, por si só, só permite até metade desta redução da procura final de energia – outra metade só pode ser conseguida através da suficiência energética.

europa pode ser 100% renovável até 2050

A Europa pode ser 100% renovável até 2050 com base em suficiência energética: ao aproveitar o seu potencial de redução da procura de energia, a Europa pode atingir um sistema de energia 100% renovável até 2050; para isto, basta a concretização dos objetivos de implantação de energias renováveis para 2030, não sendo preciso depender de opções de fornecimento energético arriscadas e dispendiosas, como a nova energia nuclear ou a captura e sequestro de dióxido de carbono. Os países podem individualmente atingir os 100% de energias renováveis mais cedo, sendo 42% em 2030, 65% em 2035 e 80% em 2040 marcos nessa via. O setor da energia na Europa pode ser praticamente 100% renovável em 2040, com a energia eólica e solar como espinha dorsal, com a eletricidade como vetor dominante em todos os principais setores de consumo.

Segundo a Zero, a abordagem do CLEVER, baseada na poupança de energia, permite: que a eletrificação seja mantida a um nível sustentável, minimizando assim a necessidade de novas infraestruturas e maximizando a sua aceitação; um uso do hidrogénio apenas nos setores em que é indispensável (indústria do aço e cimento, produção de amoníaco, transporte marítimo e aéreo), minimizando assim a pressão na procura de eletricidade de origem renovável; uma contenção na variabilidade em termos de fornecimento e procura de energia que o sistema elétrico tem de suportar, garantindo um fornecimento mais estável em qualquer momento e minimizando a necessidade de investimento em armazenamento energético.

Biocombustíveis podem ter papel importante

Os biocombustíveis sustentáveis podem ter um papel importante, na leitura da Zero, “mas limitado em certos setores críticos: isto é verdade no caso do biogás e no que concerne a certas utilizações industriais. Contudo, é fundamental garantir a sustentabilidade ao nível da produção, nomeadamente na utilização de matérias-primas sustentáveis na produção de biocombustíveis, que deve incluir o urgente abandono da utilização de culturas alimentares. É de referir também que a utilização de matérias residuais tem uma limitação decorrente da sua disponibilidade, que deve ser devidamente acautelada. Na produção de biogás será de igual forma importante garantir a sustentabilidade na sua produção, com utilização de materiais residuais e limitando a utilização de culturas agrícolas”.

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