João Amaral, Country Manager da Voltalia foi o nosso convidado na mais recente Welectric Talk. Falámos de energia renovável em Portugal, dos projetos da Voltalia e de outras questões, como os leilões de energia, o curtailment e a hibridização. Neste excerto da conversa, destacamos alguns destes temas.
Em relação à Voltalia e à sua atividade em Portugal, quais é que foram as grandes novidades este ano?
João Amaral (JA): Este ano ligámos os nossos primeiros parques próprios. Até hoje, em Portugal, estivemos sempre ou praticamente sempre a construir parques fotovoltaicos grandes e pequenos, em superfícies planas ou em ambiente completamente montanhoso para terceiros. Este ano tivemos uma diferença, ao termos entrado com os nossos primeiros projetos próprios. É uma produção destinada a produzir energia para uma determinada finalidade ou para um cliente específico, predominantemente do portfólio. Eu diria que é o grande marco de viragem. Aquilo que nós chamamos de IPP (de Independent Power Producer, ou produtor independente de eletricidade) acaba por ter o seu início neste ano de 2023.
E quais é que são os objetivos para o ano? Vamos ter também novidades?
JA: Sim. Para o próximo ano, vamos continuar a desenvolver este desígnio. Ligar um parque novo leva algum tempo. Para dar uma ideia, estamos a falar de quatro anos a quatro anos e meio no caso dos projetos que foram ligados este ano. Para 2024 não temos intenções de ligar nenhum projeto novo à rede, mas vamos continuar esse desenvolvimento e vamos continuar a fazê-lo num ambiente diferente do habitual. O nosso projeto flutuante, um dos projetos chave dentro do grupo e que vai ser feito aqui em Portugal, é o primeiro grande projeto flutuante. E depois, paralelamente a este, teremos e estamos a desenvolver também projetos de eólico. Acreditamos também na energia eólica, não só em Portugal, mas noutras geografias. Achamos que tem um espaço muito relevante.
Os players do setor vão a leilões promovidos pelo Estado para obter novos projetos. No entanto, tem acontecido que as empresas licitam valores baixos para ganhar o concurso e depois acabam por não conseguir concretizar os projetos, obrigando a reiniciar o processo todo e naturalmente, prejudicando a celeridade que precisamos todos nesta transição energética. Como é que se pode resolver esta questão?
JA: Essa pergunta é complexa porque há muitas variáveis. Qualquer empresa (não só nós, na Voltalia), mas qualquer empresa quando vai a um leilão, vai avaliar todas as condicionantes desse leilão, do mercado e de uma determinada tecnologia. Ao tomar uma decisão de avançar, vai fazê-lo sempre olhando a vários cenários, através de uma avaliação do projeto, a qual leva em conta diferentes formas de evolução do mundo – de preços de eletricidade, de evolução da tecnologia. [As empresas] Conseguiam antecipar condições não normais: quando um promotor ou uma utility decide avançar para o mercado, o que leva em conta é ‘e se tudo falhar?’. Se tudo falhar, eu vou ter um custo de “x” milhões de euros para não fazer os projetos. Logicamente que ninguém conseguia antecipar uma pandemia ou um conflito armado em plena Europa. São fatores externos. No fundo, eu diria que esse é o maior desafio quando se avança para um leilão. Aquilo que tem acontecido em Portugal com os leilões afetados por estes dois eventos extraordinários é que eles acabaram por ter alguns prolongamentos e extensões de prazo. Tanto que nós, agora, em 2023, devíamos ter o grosso dos projetos já ligados à rede e não o temos porque precisamente houve uma flexibilização daquilo que são as condições naturais. Estamos em crer que, se por um lado, a flexibilidade é boa, por outro lado, ela prejudica quem não conseguiu segurar projetos. E esse é precisamente o desafio não só de quem legisla e de quem lança os leilões, mas também de quem procura fazer projetos e procura fazer acontecer renováveis. Isto tudo para dizer que o ponto de equilíbrio é sempre muito difícil de conseguir. Acreditamos, no entanto, que há que fazer cumprir aquilo que são as regras inicialmente definidas. Vamos ter mais um desafio enquanto setor nos próximos meses. Fala-se da Tapada do Outeiro, fala-se também dos leilões da eólica offshore. Vão ser dois desafios para entender se efetivamente se vai seguir com esta tal flexibilidade que tem sido norma neste mercado português ou se vai haver aqui alguma alteração no sentido de fazer e fazer cumprir – é a utilização das garantias bancárias em prol do consumidor e do sistema, e cobrar a promotores, como nós, para fazerem acontecer. No nosso caso, comprometemo-nos com um determinado prazo e projetos. E eles estão ligados agora à rede. Não é isso que vemos em alguns projetos no mercado a acontecer.
Uma das formas de tornar as renováveis mais eficientes é combinar os seus diferentes tipos (eólica, solar e hídrica), em clusters de produção que compensam, no fundo, as limitações e as intermitências umas das outras. A hibridização pode ser uma boa solução para Portugal. Como pode ser otimizada?
JA: A hibridização é uma boa solução em qualquer cenário, não só para Portugal, mas globalmente. Quando falamos de hibridização falamos numa combinação de duas tecnologias num mesmo ponto. Há quem prefira chamar a isto misto porque no fundo pegamos em parques eólicos e parques fotovoltaicos e vamos ligá-los no mesmo ponto de ligação. A grande vantagem é que a linha que foi instalada vai ser otimizada para mais produção. Isso é positivo porque vamos pegar num bem que estava apenas pensado para uma tecnologia e vamos utilizá-lo para mais. E é fundamental para otimizarmos o custo da linha e os custos que nós, enquanto consumidores, vamos pagar pelas ligações à rede. Portanto, é, sem dúvida, algo fundamental para Portugal. Mas podem requerer um repensar na forma como olhamos para o sistema, na forma como pensamos e na evolução daquilo que eram as formas antigas de gerar eletricidade, onde tínhamos o combustível ou a matéria-prima de energia disponível, como no caso das barragens em que teríamos água disponível para poder ser turbinada. E vamos pensar em fontes onde não vamos ter sempre o sol a brilhar ou sempre o vento a soprar para conseguir produzir energia e, portanto, há um repensar que tem que ser feito. E isso implica outras coisas. Agora, sem dúvida que a hibridização faz sentido.
Mas a hibridização é possível, mesmo entre empresas que gerem soluções diferentes? Porque, por exemplo, a Voltalia tem neste momento parques solares. Mas não tem ainda eólicas, nem hídricas. Para vocês, a hibridização seria sempre em parceria com outra entidade que as tivesse. Como é que isso poderia funcionar?
JA: É uma forma fundamental de ver o tema. A hibridização para quem tem ativos hoje no mercado, vê obviamente facilitada a sua possibilidade de conseguir expandir portfólio e ter mais tecnologias. Quem não tem, vai ter que comprar ou tem o acesso dificultado. E isto é algo que já muitas vezes questionamos em fóruns abertos e fechados. Como é que, perguntando ao concedente ou ao governo, se possibilita que entrem no mercado novas empresas que não têm ativos neste momento; é sem dúvida difícil. Aquilo que eu acredito, até porque há empresas mais especializadas em fotovoltaico e outras em eólica, é que estas sinergias entre empresas podem aparecer. Pode ser necessária uma evolução da legislação para permitir com que seja mais fácil estes diferentes promotores utilizarem o mesmo ponto de ligação à rede. O desafio anda sempre à volta do ponto de ligação à rede. Como é que ele foi atribuído? Em condições é que ele foi atribuído? Como é que é expectável que seja utilizado? Posso dizer, de forma muito convicta e temos uma visão clara, que o que quer que seja feito tem que ser feito para beneficiar o consumidor, a rede e o país.
A maior parte das redes de energia, como a portuguesa, funcionam com a energia produzida de acordo com as necessidades previstas com um sistema de backup para necessidades extraordinárias. Mas, muitas vezes, temos aumentos de produção nas renováveis, que são mais difíceis de regular, criando um excedente de oferta que naturalmente tem consequências nos preços da energia. Como é que aqui se pode operar a redução da produção nessas circunstâncias? O chamado Curtailment e como é que ele pode ser uma defesa para as empresas produtoras?
JA: Curtailment é uma palavra chave no setor. É uma palavra que nós vamos ouvir cada vez mais. A par desta palavra, eventualmente uma outra que também poderá ser falada (embora não seja tão usada cá e seja usada mais noutros países) é o deloading que é uma operação permanentemente limitada e com a possibilidade de contribuir com uma sobreprodução quando necessário, produzindo mais do que aquilo que é, normalmente o limite desse parque. Temos uma necessidade de potência instantânea num determinado momento no país, ou seja, o consumo do país pode variar entre 8 ou 9 GW. Mas isso não quer dizer que nós só devêssemos ter 9 GW instalado de solar ou 9 GW instalado de eólica. Isto quer dizer que nós temos que combinar as tecnologias todas para ter um volume, uma energia que tem que ser entregue aos consumidores. E tem que haver uma adaptação também entre o momento de consumo e o momento de produção. O Curtailment é aquilo que eu acredito que pode ser um futuro expectável. Há muitos parques que vão ser construídos já com um pensamento em que nós só vamos ter uma potência ligada, permanente, igual a metade daquilo que efetivamente instalamos. Imaginamos um parque de 100 MW, mas só vai produzir 50 MW, vai estar permanentemente limitado e vai, em determinados momentos, conseguir injetar um pouco mais do que aquilo que era expectável. Mas isto requer um redesenho absoluto e completo daquilo que é a forma de pensar. Hoje em dia, quando financeiramente é avaliado um projeto – mesmo muitos projetos que estão à venda no mercado – é raro o vendedor considerar o Curtailment e é absolutamente crucial para o comprador considerar que vai haver um curtailment, que vai haver uma limitação de potência e que vai haver momentos em que todos vão estar a produzir ao mesmo tempo. E vimos nestas últimas semanas, com muito vento, com muita chuva, notícias à volta de uma produção em excesso de renováveis, levando a uma exportação para Espanha. E essa exportação foi conseguida graças, obviamente, à existência de uma capacidade instalada boa e de uma capacidade de consumo que o permitiu. Se o consumo não estivesse a acompanhar, naturalmente existiria Curtailment. Esse Curtailment vai ter uma repercussão negativa em qualquer modelo de negócio, porque é uma receita que o parque não vai conseguir fazer. Portanto, é uma palavra que vamos, sem dúvida nenhuma, falar muito nos próximos tempos e que vai ter muito impacto nas renováveis, mas pensando nas renováveis a sério. Não há renováveis sem Curtailment. Quanto mais expressão de renováveis tivermos, mais Curtailment vamos ter. E se quisermos exemplos reais, vamos a uma ilha, como a Madeira ou os Açores, e conseguimos ter estes exemplos claros, em que às vezes é preciso limitar o fotovoltaico ou eólico para conseguir ter a produção que é utilizável num determinado momento. As tecnologias complementares, o armazenamento, a bombagem reversível nas hídricas vão ajudar a complementar esta escassez de procura que possa existir e que leva ao Curtailment. É algo que também vamos ver a crescer em paralelo com as outras tecnologias que se falam, como a de veículos elétricos com carga mais regulável e veículos elétricos a contribuir para a estabilidade da rede. Até ao final da década vamos ver vários sistemas, provavelmente mais em protótipo do que reais e na década seguinte, 2031-2040, já vai ser prática comum ter este tipo de sistemas que vão ajudar a reduzir o Curtailment. Muito embora, como disse, eu acho que vai ser uma nova normalidade.
Uma das áreas em que a Voltalia se especializou foi a dos Power Purchase Agreement, os PPA, entre uma entidade que necessita de energia limpa e outra que desenvolve e gere um projeto especificamente para esse fim; são contratos de longo prazo, até podemos dizer, quase de muito longo prazo, algumas com várias décadas, com preços previamente definidos e capacidade de expansão ao longo do tempo, também já prevista no projeto. Este é um formato que vemos mais associado a grandes indústrias, mas que também pode ter aplicações em Portugal.
JA: É verdade. Aliás, para ser mais concreto, os projetos que nós ligamos à rede deste ano foram todos assentes em PPA de muito longa duração. Quando falamos em muito longa duração, falamos sempre acima de dez anos, nalguns casos até 20. E não só à indústria. Às vezes também falamos de retalho. Falamos de grandes consumidores no geral, que é, se calhar, uma das evoluções que o mercado precisa: como é que vamos fazer chegar estes PPA a consumidores de menor volume e de rácios financeiros diferentes? Porque, na verdade, quando assinamos um contrato de longo prazo, temos de ter uma expectativa de solidez financeira de uma determinada empresa ou setor daqui por cinco, dez, 15, 20 anos; eu diria que é uma das grandes dificuldades.
Mas há mecanismos de ajuste ao longo do contrato…
JA: Os contratos têm várias cláusulas que podem ser ajustadas. Logicamente que se assinarmos um contrato com uma indústria que pode eventualmente ficar insolvente, há uma exposição para o ativo.
Mas eu diria até mesmo relativamente ao preço…
JA: O preço tende a ser sempre o mesmo. Aliás, nalguns casos o preço até pode ser decrescente ou pode até não estar completamente inflacionado. Vamos colocar aqui valores para ser mais fácil para quem escuta. Quando colocamos um valor plano fixo de 0,05 €/kWh por hora (que é muito difícil para nós, consumidores domésticos, termos) e dizemos que esse preço vai estar apenas metade dele inflacionado (50% dele sujeito a inflação) para cobrir aquilo que são os custos variáveis (porque o resto do custo de investimento normalmente é fixo e a taxa de juro também pode ser negociada para também ser fixa), aí nós vamos estar perante um preço que, olhando ao mercado, vai ser reduzido porque não vai seguir a inflação por completo e portanto, uma indústria pode ver, em médio longo prazo, algo que pode afetar o seu modelo de negócio a ser um custo decrescente. Portanto, uma das vantagens do PPA é a antecipação daquilo que vão ser os custos futuros da energia, o que pode ser uma enorme vantagem. Mas dou um exemplo: uma cadeia de bens alimentares que consiga assinar um contrato para essa indústria (chamemos-lhe indústria), pode antecipar que daqui por dez anos, muito provavelmente vai vender o almoço mais caro. Mas aquilo que foi a base de energia utilizada para fazer o mesmo almoço, o [cliente] vai comer o mesmo produto. A eletricidade vai custar-nos menos e ao custar menos, porque é muito mais previsível, é muito mais fácil fazer uma orçamentação com algo que não vai estar a variar. Não vai ter que estar a negociar contratos todos os anos com qualquer fornecedor de eletricidade e portanto, há uma estabilidade que é dada ao modelo de negócio e à forma de estar perante a energia, que é completamente diferente do que estar a renegociar todos os anos o preço da eletricidade que vamos ter para o próximo ano, o volume de energia que vamos ter, as fontes. Portanto, os PPA têm algumas vantagens em relação aos quais notamos que algumas empresas estão muito abertas e que já entenderam a grande vantagem deste tipo de acordo; outras estão a dar os primeiros passos a entender, mas depois de experimentarem é muito mais complicado não ter essa visibilidade e querer fazer contratos anuais ou mesmo estar exposto às variações que o mercado traz a este tipo de consumo.
Nesta temporada, estamos um pouco mais investidos também na temática do financiamento do desenvolvimento sustentável. Como é que este setor das energias renováveis se financia; naturalmente a Voltalia terá o seu método e outras empresas também.
JA: Também neste setor a criatividade é importante e desde vermos projetos que se fazem em crowdfunding e projetos que comummente são feitos com project finance, recorrendo a banco ou a sindicatos de bancos, vemos muita coisa e podemos ir de um extremo a outro. Podemos até só ter investidores privados, podemos até ter fundos. Vemos tudo isso no mercado. Aquilo que é mais comum para nós na maior parte dos projetos é fazermos um financiamento no qual um determinado projeto tem já ligado um contrato de financiamento, recorrendo à banca (uma determinada percentagem do financiamento a advir da banca). Mas o que mais temos visto mudar nos últimos tempos – ainda não tanto a impactar o mercado português, mas mais lá fora, mas que acreditamos que possa, eventualmente também rapidamente contagiar positivamente o mercado nacional – tem sido a preocupação da banca quando vamos financiar os projetos, em olhar aos critérios de sustentabilidade, em olhar aos critérios ambientais, sociais de governance, ao ESG, para levar em conta com aquilo que é a efetiva contribuição do projeto, não só para a produção de eletricidade renovável, mas para o meio local, para o meio global e para os países onde estamos. É um tema dominante nas reuniões. Quando levamos este tema a bancos ou um sindicato de bancos é muitas vezes o desafio colocado em cima da mesa: quais é que são os impactos efetivos?; qual é que é a redução de emissões efetiva do projeto; como é que vamos controlar a cadeia de fornecimento de equipamentos para o projeto para garantirmos que nessa cadeia de fornecimento não existem tantas emissões como aquelas que estavam calculadas? São alguns exemplos daquilo que tocam a sustentabilidade e o financiamento de projetos, sabendo sempre que há alguma flexibilidade. Os projetos que fizemos aqui em Portugal avançaram com capitais próprios, 100% com capitais próprios. Depois a negociação do financiamento ocorreu, com uma nova entidade a entrar até no mercado, em paralelo com o desenvolvimento dos projetos. Isto permitiu uma aceleração, o que também é positivo.
Este excerto da entrevista foi editado com o objetivo de facilitar a leitura. A Welectric Talk com João Amaral está disponível no canal de YouTube do Welectric e também em formato Podcast, no Spotify.