A 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP28), no Dubai, entrou na fase das negociações finais.

Pela primeira vez, está a ser feito o balanço do Acordo de Paris, adotado em 2015, esperando-se que haja uma referência ao fim dos combustíveis fósseis.

No entanto, o forte lobby da indústria petrolífera presente no evento, está a fazer de tudo para evitar esse tipo de referência explícita não seja colocada no papel.

Tudo isto acontece numa altura em que uma investigação desenvolvida no âmbito da organização jornalística sem fins lucrativos SourceMaterial veio denunciar a “lavagem cerebral” que a Arábia Saudita está a fazer no domínio do petróleo.

Adotando uma lógica de “cavalo de troia”, os responsáveis sauditas estão a injetar muitos milhões no desporto automóvel ocidental para fazerem vingar os seus investimentos, revela investigação.

A jornalista Jess Staufenberg refere que o Grande Prémio de Silverstone em Fórmula 1 foi rebatizado este ano de “Formula 1 Aramco British Grand Prix 2023” para ostentar o nome da empresa estatal de petróleo da Arábia Saudita — uma parceria que é a mais recente faceta de uma campanha de “lavagem” através do desporto, de 10 mil milhões de dólares que viu o reino adquirir ativos, desde Cristiano Ronaldo até uma participação no PGA Golf.

“Desde 2018, quando um jornalista dissidente foi assassinado pelos seus agentes de segurança na Turquia, o reino do Golfo tem lutado pela sua imagem. Mas o investimento da Arábia Saudita na Fórmula 1 vai além de um exercício de ‘soft power’ para desviar a atenção das violações dos direitos humanos e do papel da Aramco como o maior emissor corporativo de carbono do mundo”, denuncia esta investigação.

Lobby junto de Bruxelas através da F1

Documentos obtidos pela SourceMaterial sugerem uma faceta mais agressiva no envolvimento dos sheiks da Arábia. Estes documentos, citados pela investigação jornalística, mostram que a Fórmula 1 mobilizou recursos em Bruxelas para fazer lobby junto de políticos em questões vitais para os interesses sauditas. “No último ano, o grupo de corridas utilizou reuniões a portas fechadas para pressionar os principais funcionários da União Europeia a recuar em planos favoráveis ao clima em prol de e-fuels [combustíveis sintéticos] que ajudarão a manter o motor de combustão interna vivo — e uma monarquia autocrática no poder”, aponta Jess Staufenberg.

O artigo ouviu diferentes personalidades. Uma delas foi Alex Keynes, gestor de veículos limpos da Transport & Environment, que entende que “os e-combustíveis são um cavalo de Troia para a continuidade do uso de combustíveis fósseis”.

O apoio à Fórmula 1 por parte da Arábia Saudita levanta a suspeita de que a F1 poderia estar a trabalhar em nome do seu parceiro comercial, usando o seu estatuto e poder de marca para apoiar os seus objetivos”, segundo James Lynch, da FairSquare, organização de direitos humanos.

Em resposta a questões da SourceMaterial, o porta-voz da Fórmula 1, Liam Parker, considerou “completamente errado” sugerir que a F1 estava a fazer lobby em nome da Aramco.

“Apenas acreditamos que temos uma solução [e-fuels] que pode ajudar a reduzir as emissões atuais e futuras de frotas de automóveis e temos partilhado proativamente isso com pessoas relevantes”, afirmou.

Adiar a mudança

A SourceMaterial recorda que há três anos a Aramco assinou um acordo de patrocínio com a Fórmula 1, supostamente no valor de 40 a 45 milhões de dólares por ano, mais 65 milhões de dólares por cada corrida, incluindo um novo Grande Prémio da Arábia Saudita, lançado em 2021. Este acordo incluía alíneas sobre o “avanço de combustíveis sustentáveis” ou ‘e-combustíveis’ — produtos sintéticos apresentados como melhores para o clima, pois têm uma queima mais limpa do que a gasolina convencional e podem ser produzidos com energia renovável.

A reportagem refere, no entanto, que muitos especialistas entendem que os combustíveis sintéticos não são tão verdes quanto parecem e que até podem ser tão poluentes quanto a gasolina convencional. Mas a maior questão, segundo os críticos, é que a tecnologia supostamente mais limpa vai justificar a manutenção dos antigos motores de combustão interna em vez da mudança para a propulsão elétrica.

“Os combustíveis sintéticos, ou e-combustíveis, concederam uma prorrogação ao motor de combustão interna”, escrevia a revista AutoTrader em março.

De acordo com a investigação da SourceMaterial, a Arábia Saudita gastou consideráveis recursos a financiar estudos académicos que atacam veículos elétricos, defendendo motores a gasolina ‘eficientes’ e alegando que a produção de energia para alimentar veículos elétricos pode gerar mais emissões do que a condução de viaturas a gasolina — uma conclusão contestada por outros cientistas.

Documentos obtidos pela SourceMaterial mostram que a Fórmula 1 usou o seu acesso aos políticos europeus para ecoar as afirmações da Arábia Saudita e da Aramco.

A Formula One Management, sediada em Londres e pertencente à norte-americana Liberty Media, que registou vendas de £351 milhões em 2022, instou a União Europeia a ajustar a legislação proposta em favor de combustíveis sintéticos, além de levantar dúvidas sobre veículos elétricos. Em setembro do ano passado, a Fórmula 1 escreveu ao gabinete de Frans Timmermans, na altura vice-presidente da UE e comissário para a ação climática, para destacar os benefícios dos “combustíveis sustentáveis” e opor-se a um plano para banir motores de combustão interna em favor de veículos elétricos até 2035, chamando-o de uma “aposta de um sentido enorme numa tecnologia relativamente nova”.

“Temos várias preocupações em relação ao foco estreito e monotecnológico da proposta atual”, escreveu o representante da Fórmula 1 à Comissão Europeia, num documento a que esta investigação jornalística teve acesso: “Ninguém sabe o suficiente neste momento para afirmar que os veículos elétricos com bateria são a melhor ou única tecnologia para os desafios que enfrentamos.”

Após a carta, a Fórmula 1 realizou reuniões com os colaboradores de Timmermans e Paolo Gentiloni, comissário da UE cujo âmbito inclui o Pacto Ecológico Europeu, impostos sobre combustíveis e objetivos de desenvolvimento sustentável. Os e-combustíveis são uma “solução de curto prazo mais impactante” para reduzir as emissões e também “têm o potencial de ser uma tecnologia mais eficaz na luta contra as alterações climáticas” do que os veículos elétricos, escreveu a Fórmula 1 a Gentiloni.

Ainda segundo esta reportagem, os responsáveis da Fórmula 1 também se reuniram com três membros do Parlamento Europeu do comité do ambiente para discutir “normas de emissões de CO2 para veículos pequenos”. Estes incluíram Andreas Glück do FDP da Alemanha, que com a Fórmula 1 organizou um evento no Parlamento Europeu para promover um relatório sobre e-combustíveis de um académico que integra o grupo de lobby e-Fuel Alliance.

A investigação jornalística acrescenta ainda que após conversações à porta fechada com a Fórmula 1, Glück apoiou uma emenda às regulamentações de emissões afirmando que os automóveis movidos a e-combustíveis podem “continuar a desempenhar um papel na trajetória de transição” e pedindo uma “infraestrutura de combustíveis alternativos em toda a Europa”.

Em resposta a perguntas da SourceMaterial, um porta-voz de Glück afirmou que este eurodeputado tem sido defensor de combustíveis sintéticos há muitos anos e que seria “claramente errado” sugerir que ele foi influenciado pela Fórmula 1.

Os frutos do lobby

Para a investigação da SourceMaterial, “o lobby da Fórmula 1 parece ter rendido frutos. Em março, sob pressão do FDP, os ministros da UE fizeram um acordo nos bastidores para permitir a venda de alguns automóveis movidos a combustíveis sintéticos — uma mudança que poderia reduzir as vendas de veículos elétricos em até 46 milhões e desencadear a queima de 135 biliões de litros adicionais de gasolina, de acordo com um estudo”.

E embora as regras propostas da UE exijam que os fabricantes de automóveis instalem motores que desliguem automaticamente se usados com gasolina convencional em vez de combustíveis sintéticos, a tecnologia para isso ainda está a anos de distância, explica Keynes, da Transport & Environment.

“Esta brecha na legislação permite essencialmente a produção contínua de motores de combustão interna, criando assim um mercado na Europa para os produtos de petróleo e combustíveis da Aramco”, conclui este elemento.

Um representante da Aramco recusou-se a comentar estas alegações.

Parker, porta-voz da Fórmula 1, defende-se, referindo: “Não somos contra os veículos elétricos”. Parker reafirmou, contudo, à reportagem que o entendimento da F1 é que “várias tecnologias são o caminho mais sensato para o futuro do setor automóvel e para acelerar as vias de descarbonização no caminho para o zero líquido.”

Empresa sem permissão para atuar como lobista

A investigação aponta ainda que a Aramco, avaliada em mais de 2 triliões de dólares, não aderiu ao registo de lobby da UE e não tem permissão para se reunir com comissários como Gentiloni. Em vez de procurar acesso oficial, faria sentido explorar a face mais aceitável da Fórmula 1, diz Belén Balanyá, pesquisadora do Corporate Europe Observatory.

“Isto trata-se da imagem pública”, comenta Balanyá: “Em reuniões com os membros do Parlamento Europeu, a Arábia Saudita soa como uma má empresa de petróleo e gás propriedade de um regime repressivo. Em contraste, a Fórmula 1 tem muitos fãs. Ao remover a Arábia Saudita e usar a Fórmula 1, está a remover-se da vista quem realmente está a beneficiar deste lobby.”

Outro dado apontado pela investigação da SourceMaterial: a Fórmula 1 contratou a mesma empresa de relações públicas que a Aramco, a Boldt, para fazer lobby junto dos legisladores da UE e gastou entre 50.000 e 99.999 euros em lobby em 2021, de acordo com o registo de transparência da UE.

Publicamente, Ross Brawn, diretor da Fórmula 1 até ao final do ano passado, chamou os e-fuels de uma “oportunidade maravilhosa”: “O grande apelo é quando encontramos esta solução, ela pode ser usada no seu carro, sem fazer alterações ao motor”, disse no ano passado.

Embora os combustíveis sintéticos possam ser produzidos com energia renovável, pode ser necessário cinco vezes mais energia no total para conduzir um carro a e-fuel na mesma distância que um elétrico, afirma Keynes.

Entretanto, a Aramco levou a sua aposta na gasolina sintética para além da Fórmula 1, com planos para uma fábrica de produção em Espanha e joint ventures com Hyundai, Renault e Aston Martin para desenvolver tecnologia de motores de combustão e “combustíveis sustentáveis de alto desempenho”.

Há também um acordo com a Fórmula Motorsport, que administra os campeonatos de Fórmula 2 e 3 de nível inferior, “para introduzir o uso de combustíveis sustentáveis” fornecidos pela Aramco.

O lobby dos combustíveis sintéticos significa mais do que moldar o mercado automóvel nas próximas décadas, diz Jim Krane, bolseiro de estudos de energia no Instituto Baker da Universidade Rice, no Texas: “Vai ao cerne da sobrevivência da monarquia saudita”.

“A Aramco é extremamente importante para que a família real saudita permaneça no poder e para que o Estado saudita seja viável”, sublinha. “O motor de combustão interna e a turbina a jato são a tecnologia que permite manter o regime saudita no poder.”

Artigo anteriorElectric Star Week é uma oportunidade para adquirir veículos elétricos e híbridos plug-in
Próximo artigoBYD ETP3: tecnologia comprovada e preço ultra competitivo